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quinta-feira, 30 de maio de 2013

A CULTURA QUE PRECISAMOS


Não podemos ficar nas montanhas. Há gente demais nos campos. Todos 
os economistas estão de acordo neste ponto. E mesmo que não tivessem!? 
Ponha-se na pele dos meus pais, que se o seu filho ficasse isolado, 
afastado do resto do mundo. Portanto, é preciso que a senhora nos 
aceite, mas não só, servem para mão-de-obra disponível. Todas as classes 
têm a sua cultura própria e não há uma classe que tenha mais ou menos 
cultura que a outra. 
Damos-lhe aquela que trazemos em nós, professora. E 
um pouco de vida na secura dos seus livros escritos por pessoas, que a 
única coisa que fizeram na vida foi ler outros livros. 
Abra um manual da escola primária. Só se vêem plantas, animais, estações. 
A primeira vista, parece que só poderia ter sido escrito por um camponês. Mas os  autores do manual vieram da sua escola. Basta observar as ilustrações: 
camponeses canhotos, enxadas, ferreiros com utensílios do tempo dos 
romanos, cerejeiras com folhas de ameixeira. 
A minha professora da primeira série disse-me uma vez: "Suba nesta árvore e colha duas cerejas". Quando a minha mãe soube, exclamou: "Só rindo mesmo! Quem é que deu o diploma a essa professora?" Deram o diploma a ela, e o 
recusaram a mim, que nunca errei o nome de uma árvore. Que conheço todas 
e posso descrevê-las. (...) 
Também sobre os homens a senhora sabe menos que nós. 
O elevador é uma máquina que serve para ignorar os outros 
locatários. O automóvel, uma máquina que serve para ignorar as pessoas 
que vão de ônibus. O telefone, uma máquina que serve para não se olhar o 
interlocutor de frente e para não entrar na casa dos outros. 

Talvez não seja o seu caso, professora, mas os seus alunos que tão bem conhecem Cícero, de quantos seres vivos conhecerão intimamente a família? Na cozinha de quantos já entraram? Em companhia de quantos já entraram, já 
velaram? De quantos já sepultaram os mortos? Com quantos poderão contar 
numa aflição? Se não tivesse havido a inundação, ainda hoje não saberiam 
de quantos membros se compõem a família do térreo. Eu passei um ano na 
sua escola e não sei nada sobre a família dos meus colegas (...) 
Diariamente mil motores estremecem os ares, o ruído que fazem entra 
pela sua janela, mas a senhora não sabe quem os faz trabalhar nem onde 
vão. Eu sei ler todos os ruídos deste vale. Aquela moto que se houve lá 
ao longe e o Metrô que vai a caminho da estação é já está atrasado. Quer 
que eu lhe diga tudo o que se sabe sobre centenas de pessoas, dezenas de 
famílias, sem esquecer os parentescos, as ligações? A senhora não sabe 
como se deve falar com um operário as palavras, o tom, os gracejos tudo 
cai mal, soa falso. 
Eu sei em que um camponês está pensando quando se 
cala e porque às vezes pensa uma coisa e diz outra diferente. É 
esta a cultura que os poetas e que a senhora admira, sempre desejaram ter. 
Nove décimos do mundo a possuem e ainda ninguém foi capaz de escrevê-la, 
pinta-lá, filma-lá. 
Ao menos seja modesta, professora. A sua cultura 
tem, como a nossa, grandes lacunas. Talvez ainda maiores que a nossa. E 
certamente mais prejudiciais a um professor de escola primária.

(Adaptado de: Alunos da escola de Barbiana. Carta a uma professora. 4a ed. Lisboa, Editorial Presenca, p.132-5).
 

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